Da vocação religiosa
(I Parte)
por Santo Afonso Maria de Ligório*
“Levá-lo-ei ao deserto e lhe falarei ao coração” (Os 2,14).
Quanto importa seguir a vocação para a vida religiosa
É verdade indiscutível que a nossa eterna salvação consiste na escolha do nosso estado. O Padre Granada chamava à eleição do estado a roda mestra da vida. Assim como nos relógios, descentrada a roda mestra, anda mal todo o relógio, assim também no negócio da salvação.
Na eleição do estado, se queremos assegurar a salvação eterna, é mister que sigamos a vocação divina, pois só assim nos concede Deus o auxílio necessário para alcançar a bem-aventurança.
E esta asserção é corroborada por São Cipriano de Cartago, que afirma: “A virtude do Espírito Santo não é dada segundo o nosso arbítrio, mas segundo a sua vontade.” Por isso diz São Paulo: “Cada um recebe de Deus o próprio dom” (I Cor. 7,7). E isto quer dizer, como explica Cornélio a Lápide, que Deus talha a cada um a sua vocação e lhe assinala o estado em que o quer salvar.
Esta doutrina conforma-se perfeitamente com a ordem da predestinação descrita pelo mesmo Apóstolo: “E aos que predestinou, a esses também justificou” (Rm 8,30). Forçoso é admitir que o problema da vocação no mundo é pouco compreendido por alguns; parece-lhes que é o mesmo viver no estado por inclinação própria. É por esse motivo que tantos levam vida desordena e se condenam. É, porém, matéria que não sofre discussão: a eleição do estado é o ponto cardeal para a conquista da vida eterna. À vocação sucede a justificação, à justificação a glorificação, isto é a vida eterna. Quem altera esta ordem e desfaz esta cadeia não se salvará! No meio de todas as fadigas e trabalhos a que se sujeitar, ouvirá sempre a voz de Santo Agostinho a lhe dizer: “Corres bem, mas fora do caminho”; quer dizer, não vais pelo caminho por onde Deus queria que fosses para alcançares a salvação. O Senhor não aceita os sacrifícios que lhe são oferecidos segundo a vontade própria. Mas a Caim e seu presente não viu com bons olhos (Gn 4,5). Mais ainda: O Senhor comina severos castigos àqueles que voltam as costas aos seus chamamentos para seguirem os conselhos da própria inclinação.
Ai dos filhos rebeldes!, declara o Senhor: “Querem realizar um desígnio, mas não o meu” (Is 30, 1).
É que o chamamento a um estado de vida mais perfeito é graça especial e muito grande que Deus não faz a todas as almas; razão tem, pois, de se indignar contra quem o despreza. Não se sentiria ofendido um príncipe que, convidando um vassalo a servi-lo de mais perto, a ser seu privado, recebesse dele uma recusa? E Deus não se ressentirá? Ressente-se, sim, e ameaça, como se lê em Isaías (Is., XLV, 9): “Ai daquele que litiga com o Criador.” A palavra “Ai” significa na Escritura perdição eterna. Começará já nesta vida o castigo do desobediente; viverá sempre inquieto, como diz Jó: “Quem se lhe opôs e teve paz?” (Jó 9,4).
Ver-se-á, além disso, privado do auxílio abundante e eficaz para viver bem.
São do mesmo parecer São Bernardo e São Leão Magno, e São Gregório Magno, escrevendo ao imperador Maurício, que por edito proibira que os soldados entrassem em religião, lhe disse desassombradamente que praticava uma injustiça, pois a muitos fechava as portas do paraíso, os quais no estado religioso se salvariam e ficando no século se perderiam.
É célebre o caso narrado pelo Padre Lancício. No colégio romano estava fazendo os exercícios espirituais um jovem de grande talento. Uma das perguntas que fez ao seu confessor foi se era pecado não corresponder à vocação religiosa. Respondeu-lhe o confessor que em si não era pecado grave, porque se tratava de um conselho e não de um preceito; mas que era pôr em grande perigo a salvação eterna, como acontecera a tantos que, por não ouvirem o chamamento de Deus, se condenaram. Assim o fez este jovem. Foi continuar seus estudos em Macerata, onde dentro em pouco começou a deixar a oração e a comunhão, acabando por se entregar à vida desregrada. Não tardou muito que, ao sair da casa de uma mulher sem-vergonha, fosse ferido de morte por um rival. Acorreram alguns sacerdotes, mas ele morreu, diante mesmo do colégio, antes que eles chegassem. Com essa circunstância quis Deus dar a conhecer que o castigo lhe adviera precisamente por ele ter desprezado sua vocação. É notável também a visão que teve um noviço, ao qual, como refere o Padre Pinamonti no tratado sobre A Vocação Triunfante, quando meditava sair da religião, Jesus Cristo se mostrou indignado no seu trono e mandou riscar o seu nome do livro da vida…
Ele, aterrado, resolveu permanecer na religião. E quantos outros exemplos semelhantes andam narrados nos livros? E quantos míseros jovens não veremos nós condenados no dia do Juízo, por não terem obedecido à sua vocação? A estes tais, como a rebeldes às luzes divinas, segundo diz o Espírito Santo: “Eles fazem parte dos rebeldes à luz, não conhecem os seus caminhos” (Jó, XXIV, 13), é justamente infligido o castigo de perderem a luz. Porque não quiseram caminhar pelo caminho que o Senhor lhes tinha marcado, e se meteram pelo que lhes apontava a sua inclinação sem as luzes do Espírito Santo, perderam-se. Eu vos comunicarei o meu Espírito, isto é, a vocação, mas porque faltaram a ela, acrescenta Deus: Visto que vos chamei, e vós não quisestes ouvir-me; visto que estendi a minha mão e ninguém presta atenção; e tendes desprezado todos os meus conselhos e não quisestes a minha admoestação; também eu rirei do vosso infortúnio e zombarei quando sobrevier o espanto (Pr., I, 23-26). Isto quer dizer que Deus não ouvirá a voz de quem desprezou a sua. Afirma Santo Agostinho: “Os que desprezaram a vontade de Deus que os convidava sentem a vontade de Deus que se vinga.”
Portanto, quando Deus chama ao estado mais perfeito, quem não quiser pôr em grande perigo a salvação eterna tem de obedecer e sem demora. De outro modo, ouvirá de Jesus Cristo as reprovações e censuras que ouviu o jovem que, ao ser convidado a segui-Lo, disse: “Seguir-te-ei, Senhor; mas primeiro permite-me ir-me despedir dos de minha casa.” E Jesus respondeu-lhe que não estava talhado para o paraíso: “Ninguém que pôs a sua mão ao arado e olha para trás é apto para o reino de Deus” (Lc., IX, 62). As luzes de Deus são passageiras e não permanentes; donde veio a dizer São Tomás de Aquino que o chamamento divino para vida mais perfeita deve ser correspondido o mais depressa possível. Debate ele na sua Suma Teológica a questão se se deve entrar em religião sem ouvir o parecer de muitos e sem longa deliberação. E responde dizendo que o conselho e a deliberação são necessários nas coisas duvidosas, mas nesta, que é decerto boa, não, visto que a aconselhou o próprio Jesus no Evangelho; a vida religiosa é o compêndio dos conselhos de Jesus Cristo.
Caso bem estranho! A gente do mundo, quando se trata de alguém que deseja entrar em religião para levar vida mais perfeita e mais segura nos perigos de se perder, diz que tais resoluções necessitam muito tempo de deliberação antes de se pôr em prática, para se certificar de se a vocação vem de Deus e não do demônio. Mas já não fala assim quando se trata de aceitar uma magistratura, um bispado, por exemplo, onde se correm tantos perigos de se perder. Então já não diz que são precisas muitas precauções para se certificar de se aquela é a verdadeira vocação de Deus. Não é esta a linguagem dos santos. São Tomás de Aquino diz que, ainda que a vocação religiosa viesse do demônio, deve abraçar-se como se abraça um bom conselho, mesmo que venha de um inimigo. E São João Crisóstomo, citado pelo mesmo Santo Doutor, afirma que Jesus Cristo, quando chama, quer tal obediência de nós, que não demoremos um só instante em segui-Lo (Hom. 14 in Math).
E por quê? Porque Deus, quanto mais se compraz em ver a prontidão com que é obedecido, tanto mais abre as mãos e enche de bênçãos a quem assim procede. Pelo contrário, quanto maior for a demora em acudir ao seu chamamento, menor será a sua generosidade e mais se afastará com as suas luzes. De modo que o chamado dificilmente seguirá a sua vocação e facilmente a abandonará.
Tudo isto levou São João Crisóstomo a dizer que o demônio, quando não consegue dissuadir alguém da resolução de se consagrar a Deus, procura ao menos fazer com que ele difira a execução, e tem por grande ganho quando obtem a dilação de um dia, de uma hora, se alcança ao menos um breve adiamento (Hom. 56, ad pop. Ant.) É que depois de um dia, depois de uma hora, mudando as ocasiões, confia em que lhe será menos difícil lograr mais tempo, confia em que a alma enfraquecida e menos ajudada da graça ceda de todo e abandone a vocação. Com estes adiamentos, a quantas almas chamadas por Deus não logrou o inimigo fazer perder a sua vocação! Por esse motivo aconselha São Jerônimo a quem é chamado a abandonar o mundo, nestes termos: “Apressai-vos, suplico-vos, e, em lugar de desatar as amarras que vos prendem ao fundo da barca, cortai-as” (Ad Paul.). Quer o Santo dizer que, assim como quem se encontrasse preso num barco que estivesse a submergir trataria de cortar as amarras e não de as desatar, assim também quem está no meio do mundo deve procurar cortar o mais depressa possível os laços que a ele o prendem e unem, para fugir quanto antes do perigo de perder-se, que lá é tão fácil.
Vejamos o que escreve São Francisco de Sales nas suas obras acerca das vocações religiosas, porque tudo ajudará a corroborar o que já dissemos e o que adiante acrescentaremos.
Para ter sinal seguro da verdadeira vocação, não é mister constância e firmeza que sejam sensíveis; basta que essa constância e firmeza existam na parte superior do espírito; donde não se há de julgar como não verdadeira vocação se quem foi chamado, antes de se desligar do mundo, deixou de experimentar aqueles afetos e consolações que experimentava a princípio, chegando até a ver-se invadido de tal repugnância e arrefecimento, que o fazem às vezes vacilar e crer que tudo está perdido. Basta que a vontade fique firme e não abandone o chamamento divino. Não é preciso mais do que a permanência certa da afeição à vocação religiosa. Para saber se Deus quer que uma alma abrace a vida religiosa, não é preciso esperar que Ele próprio lhe fale ou mande do Céu um anjo anunciar-lhe a sua vontade. Nem, muito menos, é necessário que se submeta a um exame de dez doutores, para decidir se a vocação é para ser seguida ou não; o que importa é corresponder e cultivar o primeiro movimento de inspiração divina e não desanimar e aborrecer-se, se sobrevierem desgostos e arrefecimentos; procedendo assim, Deus se encarregará de que redunde tudo para Sua maior glória. Não há por que preocupar-se com de onde parte a inspiração: o Senhor tem muitos meios de chamar os Seus servos. Umas vezes, serve-se de um sermão, outras da leitura de bons livros. A alguns chama-os quando ouvem a palavra do Evangelho, como fez a Santo Agostinho e a São Francisco de Assis.
Para com outros, serve-se das aflições e trabalhos que lhes traz o mundo, dando-lhes assim motivo para o deixarem. Ainda que venham para a vida religiosa desavindos com o mundo, nem por isso deixam de se entregar a Deus com franca devoção e vontade, e muitas vezes sucede que atingem mais alto grau de santidade que aqueles que vieram por vocação mais manifesta.
Conta o Padre Pratti que um gentil-homem montava um dia um belo e fogoso cavalo e procurava dar provas de bom cavaleiro, para agradar à dama a quem cortejava. Ora, sucedeu que numa dessas proezas de cavalaria foi cuspido do cavalo abaixo, caiu no lodo e levantou-se todo sujo e enlameado. Foi tal a sua confusão e vergonha, que naquele mesmo instante resolveu entrar na vida religiosa. “Ó mundo traidor”, disse ele de si para consigo, “tu fizeste pouco de mim, também eu vou fazer pouco de ti; fizeste-me uma partida, far-te-ei outra; não voltarei a fazer as pazes contigo. Vou-te abandonar imediatamente e fazer-me religioso.” De fato entrou em religião e nela viveu santamente.
* (27/9/1696-2/8/1787.) Bispo de Santa Agatá dos Godos; Confessor e Patrono Celeste dos Confessores; Fundador dos Missionários Redentoristas.
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