São Paulo
O Apóstolo das Gentes
Nem
a vida nem a morte podiam separar a Paulo do amor de Cristo. Por isso, dois mil
anos depois do início de sua peregrinação terrena, a monumental obra apostólica
do Apóstolo das Gentes continua viva e produzindo abundantes frutos para a
Igreja.
A vocação
é um dom concedido liberalmente por Deus. E, por vezes, compraz-se o Senhor em
chamar alguém aparentemente contrário à missão para a qual Ele o destina, a fim
de manifestar com maior fulgor o poder de Sua Graça e a gratuidade do Seu
chamado. Nesses casos, apesar dos aparentes paradoxos e à revelia do próprio
interessado, cujas aspirações parecem entrar em choque com os desígnios
Divinos, o Senhor vai preparando os caminhos, servindo-Se até dos próprios
obstáculos para fazer cumprir sua Santa Vontade.
Jovem fariseu de Tarso
Nada
parecia indicar que aquele jovenzinho de rosto vivo e inteligente, de nome
Saulo, viesse a transformar-se num intrépido defensor de Jesus Cristo. Nascido
em Tarso, na Cilícia, no seio de uma família judaica, o pequeno Saulo esteve,
desde muito cedo, sujeito a duas fortes influências que pesariam grandemente na
formação de seu caráter.
De
um lado, as convicções religiosas que aprendera de seus pais não tardaram em
fazer dele um autêntico fariseu, apegado às tradições, anelante pela chegada de
um Messias vitorioso e libertador do povo eleito, então submetido ao jugo
estrangeiro, e zeloso cumpridor da Lei até em suas mínimas prescrições.
De
outro lado, o ambiente de sua cidade natal marcou profundamente a personalidade
do jovem fariseu. Tarso — metrópole grega, súdita do Império Romano —
tornara-se, por sua localização privilegiada, um dos centros de comércio mais
importantes daquele tempo. Regurgitava de gente, proveniente das nações mais
diversas, cujas línguas e costumes misturavam-se sob o fator preponderante da
cultura helênica. A Providência começava a preparar o jovem fariseu para sua
futura missão de Apóstolo das Gentes.
Discípulo de Gamaliel
Apenas
saído da adolescência, Saulo abandonou sua pátria para instalar-se na
cidade-berço da religião de seus antepassados: Jerusalém. Ali tornou-se assíduo
estudioso das Escrituras, instruído pelo douto Gamaliel, um dos mais destacados
membros do Sinédrio. Também aqui podemos notar a mão de Deus intervindo em sua
vida, pois o conhecimento dos Livros Sagrados, que adquiriu ao longo desses
anos, servir-lhe-ia mais tarde para abrir seus horizontes a respeito da
realidade messiânica de Jesus Cristo.
Entretanto,
se Saulo progredia a passos rápidos nas doutrinas farisaicas, sob o olhar
vigilante de Gamaliel, em nada pareceu assimilar a prudência que caracterizava
seu mestre, sempre cauto em seus juízos e comedido nas apreciações. Pelo
contrário, o jovem aluno dava mostras de um exaltado fanatismo religioso, como
ele mesmo confessaria em sua epístola aos Gálatas: “Avantajava-me no judaísmo a
muitos dos meus companheiros de idade e nação, extremamente zeloso das
tradições de meus pais” (Gl 1, 14).
No
interior do discípulo de Gamaliel latejava um coração sincero, à procura da
verdade. Buscava-a ardorosamente, desejoso de alcançar o pleno conhecimento
dela. Não sabia que o termo desses seus anseios encontrava-se nAquele que, de
Si mesmo, dissera: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida; ninguém vem ao Pai
senão por Mim” (Jo 14, 6).
Sim,
Saulo não poderia chegar ao Pai, Suprema Verdade, sem passar por Jesus, o
Mediador entre Deus e os homens. A afirmação proferida pelo Divino Mestre,
momentos antes de Sua Paixão, ele a veria cumprir-se em sua vida, ainda que
contra a sua vontade e apesar de suas relutâncias. E a ocasião se haveria de
apresentar justamente quando as convicções de Saulo, chocadas ante o
Cristianismo que surgia, haviam-se convertido em ódio profundo contra este.
Encontro de Saulo com o Cristianismo
Saulo
passara alguns anos fora de Jerusalém, que coincidiram com o período da vida
pública de Jesus. Quando voltou, verificou uma grande mudança. A Cidade Santa
não era a mesma que ele conhecera em seus tempos de estudante: após a tragédia
da Paixão, pesava sobre a consciência do povo e, sobretudo, das autoridades a
figura ensangüentada da Vítima do Gólgota, que eles em vão procuravam lançar no
esquecimento. E mais: os discípulos daquele Homem não temiam pregar sua
doutrina no próprio Templo, proclamando que esse Jesus a quem haviam matado
ressuscitara dos mortos (cf. At 3, 11ss.).
Tais
acontecimentos não podiam deixar indiferente um fariseu convicto como Saulo.
Não compreendia que aqueles simples galileus se levantassem impunemente contra
a religião de seus antepassados, arrastando atrás de si tamanha multidão de
seguidores. Sua irritação chegou ao auge quando, estando na sinagoga chamada
dos Libertos, onde semanalmente se reuniam judeus de todas as comunidades da
Diáspora, deparou-se com um jovem chamado Estêvão, que anunciava denodadamente
as glórias do Crucificado.
Momentos
mais tarde, tendo sido apresentado Estêvão ao tribunal do Grande Conselho,
Saulo escutou atentamente o longo discurso no qual este demonstrou, por meio de
exemplos históricos e de profecias, ser Jesus o Messias esperado. O jovem
fariseu sentia-se incomodado: as palavras de Estêvão eram tão inspiradas e
convincentes, que não se lhe podia resistir (Cf. At 6, 10); de outro lado, a
imagem desse Jesus Nazareno, que ele não conhecera, parecia persegui-lo, e
constantemente via-se obrigado a ouvir falar a respeito, de tal modo os seus
adeptos se espalhavam por Jerusalém. Duro lhe era recalcitrar contra o aguilhão
(cf. At 26, 14). E, entretanto, Saulo recalcitrava!
Indignado
diante da coragem de Estêvão, aprovou entusiasticamente sua morte (cf. At 8, 1)
e considerou como uma honra a missão de custodiar os mantos dos apedrejadores,
uma vez que sua idade não lhe permitia levantar a mão contra o condenado.
Surge o perseguidor dos cristãos
A
partir daquele dia, o exaltado discípulo de Gamaliel não pôs mais freio à sua
fúria. Acreditando “que devia fazer a maior oposição ao nome de Jesus de
Nazaré” (At 26, 9), entrava nas casas dos fiéis e arrancava delas homens e
mulheres para entregá-los à prisão (cf. At 8, 3); chegava a maltratá-los para
obrigá-los a blasfemar (cf. At 26, 11). Não contente com devastar apenas a
Igreja de Jerusalém, foi apresentar-se ao príncipe dos sacerdotes, pedindo-lhe
cartas para as sinagogas de Damasco, com o fim de prender, nessa cidade, todos
os que se proclamassem seguidores da nova doutrina (cf. At 9, 2).
Mas,
esse Jesus a quem ele teimava em perseguir (At 9, 5), viria a atravessar-Se de
novo em seu caminho, desta vez de modo definitivo e eficaz.
No caminho de Damasco
Podemos
imaginar a ânsia do jovem Saulo ao aproximar-se de Damasco, antegozando a hora
de saciar sua cólera no cumprimento da missão que se propunha. Mas eis que,
subitamente, uma luz fulgurante vinda do Céu envolveu-o e a seus companheiros,
derrubando-o do cavalo. Ali, caído por terra e cegado pelo resplendor dos raios
divinos, o orgulhoso fariseu não pôde mais resistir ao poder de Cristo e
declarou-se vencido: “Senhor, que queres que eu faça?”(At 9, 6).
De
perseguidor que era, poucos instantes antes, passava a servo fiel, pronto para
obedecer aos mandatos do Divino Perseguido. Quanta glória para o Crucificado!
Por um simples toque de Sua graça, transformara em Seu Apóstolo um dos mais
ferventes discípulos daqueles que haviam sido seus principais contendores,
durante sua vida pública.
Ajudado
por seus companheiros, Saulo ergueu-se do chão. Entretanto, mais do que
levantar-se do solo, surgiu em sua alma “o homem novo, criado à imagem de Deus,
em verdadeira justiça e santidade” (Ef 4, 24). O blasfemador de outrora
permaneceria para sempre prostrado num amoroso reconhecimento de sua derrota:
“Jesus Cristo veio a este mundo para salvar os pecadores, dos quais sou eu o
primeiro. Se encontrei misericórdia, foi para que em mim primeiro Jesus Cristo
manifestasse toda a sua magnanimidade e eu servisse de exemplo para todos os
que, a seguir, nEle crerem, para a vida eterna” (I Tm 1, 15-16).
Saulo converte-se em Paulo
Com
a mesma radicalidade com que outrora se apegara ao judaísmo, Saulo abraçava
agora a Igreja de Cristo. A graça respeitara a natureza, conservando as
características próprias de sua personalidade que viriam mais tarde a
contribuir na formação da escola paulina de vida espiritual. A partir desse
momento, o Saulo convertido, o novo Paulo, só se moveria por um único ideal,
que tomava todas as fímbrias de sua alma e dava verdadeiro sentido à sua
existência: “Quanto a mim, não pretendo, jamais, gloriar-me, a não ser na cruz
de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim, e eu
para o mundo” (Gl 6, 14).
Doravante
essa Cruz — na qual Paulo não apenas considerava os sofrimentos do Salvador,
mas via, sobretudo, os esplendores da Ressurreição — seria para ele o rumo de
sua vida, a luz dos seus passos, a fortaleza de sua virtude, o seu único motivo
de glória. Esse amor, que num instante operara a sua transformação, o impelia
agora a falar, a pregar, a percorrer os confins do mundo a fim de conquistar
almas para Cristo, arrancando-lhe, do fundo do coração, este gemido: “Ai de mim
se eu não evangelizar!” (I Cor 9, 16).
Por
esse amor estava disposto a enfrentar todas as tribulações, a suportar os
piores tormentos, fossem de ordem natural, como também os de ordem moral:
“Muitas vezes vi a morte de perto. Cinco vezes recebi dos judeus os quarenta
açoites, menos um. Três vezes fui flagelado com varas. Uma vez apedrejado. Três
vezes naufraguei, uma noite e um dia passei no abismo. Viagens sem conta,
exposto a perigos nos rios, perigos de salteadores, perigos da parte de meus
concidadãos, perigos da parte dos pagãos, perigos na cidade, perigos no
deserto, perigos no mar, perigos entre falsos irmãos! Trabalhos e fadigas,
repetidas vigílias, com fome e sede, freqüentes jejuns, frio e nudez! Além de
outras coisas, a minha preocupação cotidiana, a solicitude por todas as
igrejas!” (II Cor 11, 23-28).
Ele
havia se proposto, antes de tudo, à glorificação de Jesus Cristo e da Sua
Igreja, e isto constituía para ele o suco essencial, o norte de sua vida. A
este respeito comenta São João Crisóstomo: “Cada dia ele subia mais alto e se
tornava mais ardente, cada dia lutava com energia sempre nova contra os perigos
que o ameaçavam. [...]Realmente, no meio das insídias dos inimigos, conquistava
contínuas vitórias, triunfando de todos os seus assaltos. E em toda parte,
flagelado, coberto de injúrias e maldições, como se desfilasse num cortejo
triunfal, erguendo numerosos troféus, gloriava-se e dava graças a Deus,
dizendo: ‘Graças sejam dadas a Deus que nos fez sempre triunfar’ (II Cor 2,
14).”
Apóstolo das Gentes
Assim,
pouco a pouco, por meio de suas viagens apostólicas e das numerosas cartas
através das quais sustentava na Fé seus filhos espirituais, Paulo ia assentando
os fundamentos da Esposa Mística de Cristo. Nem mesmo internamente havia de lhe
faltar adversários: por vezes, entre os próprios cristãos, surgiam conceitos
errôneos, como o de querer obrigar os pagãos convertidos a praticar os costumes
da Lei Mosaica. A esse respeito Paulo levou sua ousadia até o ponto de discutir
com o próprio Apóstolo Pedro, “resistindo-lhe francamente, porque era
censurável” (Gl 2, 11).
Pedro
aceitou com humildade o ponto de vista de Paulo e apressou-se em colocá-lo em
prática. Mas os cristãos que haviam espalhado suas idéias pelas igrejas da
Galácia não o imitaram, acrescentando ainda que a justificação provinha
estritamente do cumprimento da Lei. Nada poderia ser tão nocivo para a Igreja
nascente do que tais enganos, e Paulo logo o percebeu. Decidiu deixar por
escrito toda a doutrina sobre esse ponto, e o fez com tanta segurança e clareza
que deduz-se tê-la recebido dos lábios do próprio Jesus.
Assim,
a epístola dirigida aos Gálatas é um escrito polêmico, sem receios de
apresentar a verdade tal como ela é: “Ó insensatos gálatas! Quem vos fascinou a
vós, ante cujos olhos foi apresentada a imagem de Jesus Cristo crucificado?
[...] Todos os que se apóiam nas práticas legais estão sob um regime de
maldição” (Gl 3, 1.10). E pouco antes, afirmava: “Nós cremos em Jesus Cristo, e
tiramos assim a nossa justificação da fé em Cristo, e não pela prática da lei”
(Gl 2, 16).
São Paulo e os gregos
Se
Paulo teve de enfrentar oposições dentro de seu próprio povo, viu-se também
contestado pelos gregos, que apresentavam objeções de teor completamente
diferente, mas não menos perigosas. A Grécia, principal centro da cultura naqueles
tempos, orgulhava-se da fama de seus pensadores e de ser o berço da filosofia.
Ora, a palavra e a pregação trazidas por Paulo, “longe estavam da eloqüência
persuasiva da sabedoria” (I Cor 2, 4), como ele mesmo afirmava.
Assim,
não raras vezes tornava-se ele alvo do desprezo ou objeto de vergonha para os
convertidos. Ele pouco se importava com as ofensas feitas à sua pessoa, mas
receava que seus discípulos fizessem eco a idéias tão vãs ou viessem a
sucumbir, por medo das humilhações. Por isso, escrevia ele aos fiéis de
Corinto, cidade onde principalmente essas falsas doutrinas haviam encontrado
aceitação: “A linguagem da Cruz é loucura para os que se perdem, mas para os
que foram salvos, para nós, é uma força divina” (I Cor 1, 18).
Não
era esse, porém, o pior dos obstáculos encontrados por Paulo na Grécia.
Afundados na devassidão e na desordem moral, os gregos haviam elaborado, ao
longo dos tempos, uma justificativa para os seus maus costumes, negando a
ressurreição dos mortos. Alguns mesmo, como Epicuro de Samos (†270 a.C.),
chegaram a afirmar que a alma humana é material e mortal.
No
próprio Evangelho percebemos lampejos dessa candente temática quando os
saduceus — que, por influência helênica, não acreditavam na ressurreição — se
aproximaram de Jesus para pô-lo a prova, mediante uma pergunta capciosa (cf. Lc
20, 27-39). A discussão, como vemos, vinha de longa data e se erguia como
principal empecilho para o desenvolvimento do apostolado paulino.
Talvez
Paulo, em seus tempos de fervor fariseu, já tivera de enfrentar os mesmos
saduceus a esse propósito. Agora, porém, como cristão, possuía o argumento da
Ressurreição de Cristo e contava com o poderoso auxílio da graça.
Grande Apóstolo da Ressurreição
As
dúvidas expostas pelos gregos, quando não a oposição aberta, servir-lhe-iam de
estímulo para aprofundar-se mais na doutrina da ressurreição e deixá-la
explicitada para os séculos futuros. Assim escreveu ele aos coríntios: “Ora, se
se prega que Jesus ressuscitou dentre os mortos, como dizem alguns de vós que
não há ressurreição? Se não há ressurreição dos mortos, nem Cristo ressuscitou.
Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé.
[...] Se é só para esta vida que temos colocado a nossa esperança em Cristo,
somos, de todos os homens, os mais dignos de lástima. Mas não! Cristo
ressuscitou dentre os mortos como primícias dos que morreram!” (I Cor 15,
12-14; 19-20).
Custoso
era, para aqueles gregos de vida desregrada, ter de assimilar esses princípios.
Aceitando a ressurreição da carne, ver-se-iam forçosamente convidados a uma
mudança de costumes e a abraçarem um modo de pensar e de comportar-se
condizente com essa esperança. Mas até mesmo suas relutâncias contribuiriam
para o bem, como afirma o próprio Paulo: “Oportet
et haereses inter vos esse” (I Cor 11, 19) — é necessário que haja
partidos, ou heresias, entre vós. Impelido pelas circunstâncias, Paulo se
transforma no grande Apóstolo da Ressurreição.
Cordeiro e leão ao mesmo tempo
Nem
tudo, porém, eram combates para o incansável Paulo. Se face ao erro e à falta
de fé ele mostrava todo o seu ardor combativo e sua intransigência, em relação
aos bons deixava entrever um fundo de alma extremamente afetuoso e compassivo,
ordenado segundo a caridade de Cristo. Nesta admirável conjugação de virtudes,
na aparência opostas, Paulo assemelhava-se ao Divino Mestre, sempre disposto a
perdoar ou pronto a repreender, a ser Cordeiro e Leão ao mesmo tempo.
Em
sua carta aos fiéis de Filipos, que se inquietavam por seus sofrimentos e suas
necessidades, assim escreve: “Deus me é testemunha da ternura que vos consagro
a todos, pelo entranhado amor de Jesus Cristo!” (Fil 1, 8). E ainda, aos mesmos
gálatas, que antes invectivara a respeito de seus desvios, escrevia mais
adiante: “Filhinhos meus, por quem de novo sinto dores de parto, até que Cristo
seja formado em vós, quem me dera estar agora convosco” (Gl 4, 19).
São Paulo, segundo Bossuet
Difícil
é exaltar o Apóstolo das Gentes em espaço tão exíguo. A pluralidade estonteante
de seus feitos, o poder de sua voz e o alcance de sua ação apostólica, cujos
frutos até hoje alimentam a Igreja, deixam em embaraço qualquer escritor. Por
isso recorremos à incomparável eloqüência de Bossuet, que assim descreveu o
ímpeto da pregação do Apóstolo:
“Este
homem, ignorante na arte do bem-falar, de locução rude e de acento estrangeiro,
chegará à esmerada Grécia, mãe de filósofos e oradores, e, apesar da
resistência mundana, fundará mais igrejas do que Platão teve discípulos.
Pregará a Jesus em Atenas, e o mais sábio dos oradores passará do Areópago para
a escola deste bárbaro. Continuará mais adiante em suas conquistas, e abaterá
aos pés do Senhor a majestade das águias romanas na pessoa de um pró-cônsul, e
fará tremer em seus tribunais os juízes diante dos quais fora citado. Roma
ouvirá sua voz, e um dia aquela velha mestra sentir-se-á mais honrada com uma
só carta do estilo bárbaro de São Paulo, dirigida a seus cidadãos, do que por
todas as famosas arengas que outro dia escutara de Cícero.”
A prisão em Jerusalém
Sim,
Roma, haveria de ouvir sua pregação e suas ruas calçadas de grandes pedras
seriam pisadas pelos pés do Apóstolo. Esses pés, entretanto, arrastariam
pesadas correntes que lhe tolheriam a liberdade dos movimentos. Acusado pelo
ódio de seus concidadãos, por causa de sua fidelidade a Cristo, Paulo fora
entregue à justiça romana. Se seu corpo suportava as cadeias e os grilhões, sua
alma sentia pesar sobre si o suave jugo de Cristo. Prisioneiro do Espírito (cf.
At 20, 22), Paulo recebera, à noite, esta revelação: “Coragem! Deste testemunho
de Mim em Jerusalém, assim importa também que o dês em Roma” (At 23, 11).
Obediente
à inspiração recebida, Paulo exclamará no tribunal do governador Festo: “Estou
perante o tribunal de César. É lá que devo ser julgado.[...] Apelo para César!”
(At 25, 10-11). Querendo desfazer-se de caso tão complicado, que envolvia
assuntos da religião judaica, Festo apressou-se em satisfazer o desejo do
preso, mandando-o para Roma, algemado e sob a guarda do centurião Júlio.
O primeiro período de pregação em Roma
Durante
a viagem, Paulo não perdia a oportunidade de anunciar o Evangelho em todos os
lugares por onde passava. Após várias dificuldades ao longo da travessia e
enfrentar um naufrágio, fez escala em Siracusa, na Sicília, e dali foi
conduzido a Reggio (cf. At 28, 12-13).
Uma
vez chegado à capital do Império e instalado em prisão domiciliar, Paulo
realizava um anseio que havia tempos acalentava no coração, como ele mesmo o
expressara aos cristãos de Roma: “Daí o ardente desejo que eu sinto de vos
anunciar o Evangelho também a vós, que habitais em Roma” (Rm 1, 15). Dois anos
haveria de durar seu doloroso cativeiro, mas ele, como afirma São João
Crisóstomo, “considerava como brinquedo de criança os mil suplícios, os
tormentos e a própria morte, desde que pudesse sofrer alguma coisa por Cristo”.
Aproveitou o tempo para pregar o Reino de Deus (cf. At 28, 31), escrever
numerosas cartas às comunidades da Grécia e da Ásia, as chamadas Epístolas do
cativeiro.
Mas
a Providência pedia de seu Apóstolo ainda mais alguns anos de abnegação e
fadigas, a ele que suspirava pela morte, considerando-a um lucro para ganhar a
Cristo (cf. Fl 1, 21).
Novas viagens e retorno à capital do Império
Libertado
por um decreto jurídico, Paulo ainda visitaria Creta, Espanha e novamente as conhecidas
igrejas da Ásia Menor, pelas quais tanto se dedicara. Afinal voltaria a Roma
para onde se sentia atraído, talvez por um secreto pressentimento da
proximidade da “coroa da justiça” (II Tm 4, 8) que ali o aguardava.
Sobre
o trono dos césares sentava-se então o terrível Nero, cuja crueldade, aliada a
um orgulho patológico, já fizera sua fama. Era conhecido o ódio que votava aos
cristãos, e Paulo não passou despercebido à perspicácia dos espiões do tirano.
Acusado
como chefe da seita, foi preso pela polícia imperial e lançado no Cárcere
Mamertino, onde, segundo uma antiga tradição, já se encontrava Pedro. Nesse
escuro subterrâneo, de estreitas dimensões e teto baixo, o Pontífice da Igreja
de Cristo e o Apóstolo das Gentes estiveram acorrentados a uma mesma coluna.
Assim, unidos numa mesma Fé e esperança, estavam ambos amarrados pelas cadeias
do amor ao Rochedo, que é Cristo (cf. I Cor 10, 4).
O martírio de São Paulo
Chegou
por fim o dia em que Paulo deveria “ser imolado” (II Tm 4, 6). Para ele a morte
pouco significava, pois já se achava morto para o pecado e vivo para Deus (cf.
Rm 6, 11). Uma entranhada e exclusiva união o ligavam a seu Senhor. Não era ele
mesmo que vivia, mas sim Cristo quem nele habitava (cf. Gl 2, 20) e operava.
Condenado
à morte, Paulo, por ser cidadão romano, não podia, como Pedro, sofrer a pena
ignominiosa da crucifixão, mas sim a da decapitação, e esta devia dar-se fora
dos muros da cidade. Conduzido por um grupo de soldados, o Apóstolo arrastou
seus pesados grilhões ao longo da Via Ostiense e, depois, pela Via Laurentina,
até alcançar um distante vale, conhecido pelo nome de Aquæ Salviæ.
Ali,
entre a vegetação daquela região pantanosa, o sublime imitador de Jesus Cristo
selava seu testemunho com o próprio sangue. Sua cabeça, ao cair no solo sob o
golpe fatal da espada, saltou três vezes, fazendo brotar em cada um dos pontos
uma fonte de água borbulhante. Este fato, se não comprovado pela História,
baseia-se numa piedosa tradição confirmada pelo nome de Tre fontane, que ostenta
o mosteiro trapista construído naquele local.
“Combati o bom combate”
Paulo
morrera, mas sua monumental obra apostólica, fundamentada na caridade que
consumira sua vida, continuava viva e produziria ao longo dos tempos abundantes
frutos para a Igreja. Até o último alento, sua vida não fora senão uma grande
luta. Luta de entusiasmo e de entrega, de desprendimento e de heroísmo; luta
para levar o Evangelho a todas as gentes, confiando sempre na benevolência de
Cristo.
Os
piores vagalhões da vida não puderam atingir o seu tabernáculo interior. Sua
firmeza, semelhante à imobilidade de um rochedo batido pelas ondas do mar,
mantinha-se inalterável em meio às maiores angústias e agonias, certo de que
nem a vida nem a morte o poderiam separar do amor de Cristo (cf. Rm 8, 38-39).
E
uma vez concluído o combate, percorrida toda a sua carreira e chegado ao termo
de sua peregrinação terrena (cf. II Tm 4, 7), o Apóstolo apareceu ante o olhar
admirado da humanidade, em toda a sua estatura de gigante da Fé, transmitindo
para os séculos futuros esta mensagem: “Por ora subsistem a fé, a esperança e a
caridade — as três. Porém, a maior delas é a caridade. A caridade jamais
acabará!” (I Cor 13, 13.8). ²
Fonte:
Revista Arautos do Evangelho, Jul/2008, n. 79, p. 26 à 33;
Fotos: Portal A 12
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